Soluções baseadas na natureza a única alternativa para uma gestão sustentável dos recursos hídricos em bacias urbanas
Eventos atmosféricos extremos estão se tornando cada vez mais frequentes ao redor do mundo, resultando em secas, incêndios, ondas de calor, destruição de recifes de corais devido a mudança da temperatura do oceano e em rigorosas cheias nas cidades, como recentemente observado no estado do Rio Grande do Sul. De acordo com a ONU, atualmente mais de 55% da população mundial vive em cidades, e espera-se que essa porcentagem alcance 68% até 2050 [1]. A urbanização cresce em um ritmo sem precedentes, contribuindo significativamente para a crise climática, e é nas cidades que mudanças precisam acontecer.
A boa notícia é que esses problemas podem ser amenizados implementando uma gestão sustentável dos recursos hídricos em bacias urbanas, independente do estágio de desenvolvimento das cidades. Uma abordagem promissora é a combinação de soluções baseadas na natureza com os sistemas construídos pelo ser humano, transformando as cidades em verdadeiras “cidades esponjas”. As soluções baseadas na natureza, também denominadas de LIDS (Low Impact Development Systems), são sistemas altamente eficientes, inspirados nos mecanismos naturais do ciclo da água, que permitem a coleta e o tratamento da água da chuva por meio de processos como evaporação, infiltração, filtragem e armazenamento [2]. Esses processos devolvem a água ao ciclo natural sem causar grandes estragos. Dependendo da região, as soluções baseadas na natureza podem ser designadas por outras terminologias, como por exemplo, Sustainable Urban Drainage Systems (SUDS) no Reino Unido, ou Water Sensitive Urban Design (WSUD) na Austrália.
Essas soluções representam uma alternativa à infraestrutura convencional, geralmente projetadas para períodos de retorno específicos e que escoam a água da chuva para fora da bacia de onde foi gerada através de tubulações de concretos, acelerando o fluxo de escoamento e causando problemas para as populações que moram a jusante. A aplicação de soluções baseadas na natureza pode promover maior resiliência urbana contra inundações extremas, melhorar a qualidade da água, transformando-a em um recurso para a comunidade, e atuar como uma linha de frente contra os impactos das mudanças climáticas, além de trazer inúmeros benefícios para o cotidiano urbano.
A modelagem do ciclo hidrológico em áreas urbanas emerge como uma ferramenta essencial na avaliação da implementação de novas tecnologias de drenagem sustentável para uma boa gestão da água de chuva. Com o aumento da complexidade dos processos hidrológicos urbanos, a conexão dessas tecnologias à infraestrutura existente e a planejamento urbanístico se torna um desafio expressivo que a modelagem pode ajudar a resolver.
Estudo de caso
Para avaliar quantitativamente a eficácia de diferentes tecnologias LIDS na mitigação de inundações urbanas, foi criado uma rede de drenagem acoplada a uma superfície 2D utilizando o software MIKE+. Dessa forma, em caso de chuvas extremas, o excesso de água nas galerias transbordará pelos poços de visita e escoará pela superfície, trazendo consequências para a população local.
O MIKE+ é um software de modelagem de águas urbanas integrada em uma única plataforma, incluindo redes de tubulação, rios, áreas costeiras e muito mais.
A área de estudo compreende um pequeno condomínio de aproximadamente 20.500 m², sendo 2.266 m² de ruas asfaltadas, 5662 m² de edificações, 6339 m² de pavimentos, como pátios e passeios, e 6258 m² de áreas verdes. A Figura 1 ilustra as sub-bacias urbanas, divididas conforme os lotes, o sistema de drenagem, as características de uso e ocupação do solo e as tecnologias LIDS que serão implementadas no cenário sustentável.
Foram criados dois cenários distintos: o cenário atual, que representa as condições atuais de drenagem da bacia, e o cenário sustentável, que inclui a implementação de diversas tecnologias LIDS. A diferença entre os cenários representa a eficácia hidráulica das tecnologias sustentáveis na bacia hidrográfica.
Figura 1. Área de estudo

O modelo hidrológico utilizado foi o Kinematic Waves. O cálculo do escoamento superficial é baseado nas perdas hidrológicas, incluindo infiltração, e no roteamento do escoamento pela fórmula de onda cinemática [3]. Para cada sub-bacia, foram inseridas frações de área total para diferentes categorias de superfície: plano impermeável, íngreme impermeável, alta permeabilidade, média permeabilidade e baixa permeabilidade. As porcentagens de cada área foram estimadas a partir das informações das edificações, ruas, áreas verdes, passeios e pátios.
A delimitação das bacias hidrográficas foi realizada com base nas áreas dos lotes. Como resultado, foram identificadas 57 sub-bacias urbanas, sendo 44 em lotes privados e 13 em ruas. Essa abordagem permite direcionar o escoamento da água da chuva das ruas para os bioretentores que, no cenário sustentável, são incorporados como elementos hidráulicos ao longo do meio-fio (Figura 2). No cenário atual, as sub-bacias das ruas são conectadas ao sistema de drenagem convencional.
Figura 2. Bioretentores ao longo do meio-fio

Os bioretentores são estruturas escavadas no solo, compostas por uma camada de cascalho na base, seguida por solo poroso e uma camada superficial de vegetação adaptada a condições variáveis de umidade. A localização dessas estruturas nas ruas considera a topografia e as condições de tráfego locais, e deve ser planejada estrategicamente para interceptar o escoamento antes que alcance os sistemas tradicionais de drenagem [4].
A implementação das tecnologias LIDS no MIKE+ pode ser realizada em duas escalas: a escala da bacia, onde as estruturas são acopladas às bacias hidrográficas, e a escala hidráulica, que permite a conexão das estruturas ao sistema de drenagem. Neste estudo, foram instalados dez bioretentores ao longo das ruas como elementos hidráulicos, embora não conectados ao sistema de drenagem. Na escala de bacia, foram inseridos em diferentes sub-bacias urbanas: quinze jardins de chuva, dez cisternas, quatro trincheiras de infiltração e três grandes áreas de pavimento poroso em lotes impermeáveis. Além dessas estruturas, também é possível implementar outras soluções, como telhados verdes e valas vegetadas.
As estruturas acopladas às bacias hidrográficas são projetadas para captar a água de áreas impermeáveis dentro de cada sub-bacia urbana, reduzindo assim o volume de escoamento superficial que entra pelas bocas de lobo e vai para o sistema de tubulações de drenagem. Para avaliar mais de um tipo de tecnologia em uma mesma sub-bacia, é necessário definir as porcentagens individuais de cada tecnologia, garantindo que a soma dessas porcentagens não ultrapasse o percentual total de área impermeável da bacia. Embora não estejam fisicamente conectados à rede de drenagem, esses sistemas podem ser implementados em larga escala para demonstrar os benefícios das tecnologias LIDS na gestão sustentável das bacias hidrográficas.
O MIKE+ possui uma estrutura genérica e adaptável, que permite inserir diferentes tecnologias LIDS no modelo. Essa estrutura é baseada em diferentes camadas: de superfície, pavimento, solo, armazenamento e dreno de fundo. Assim, cada tecnologia é configurada com suas próprias camadas e parâmetros, conforme necessário. Neste estudo, as estruturas foram inseridas com os mesmos parâmetros e espessuras, sendo a única diferença a área superficial de cada unidade entre as sub-bacias urbanas.
A Figura 3 apresenta a estrutura genérica dos LIDS e os parâmetros das diferentes camadas inseridos para cada tecnologia utilizada neste exemplo. Vale destacar que o desenvolvimento das tecnologias LIDS no MIKE+ é fundamentada em pesquisas publicadas pela United States Environmental Protection Agency (US EPA).
Figura 3. Estrutura genérica dos LIDS e parâmetros utilizados no MIKE+
De maneira geral, as estruturas funcionam da seguinte maneira: antes da chuva, os vazios do solo estão mais ou menos preenchidos com água, dependendo se houve eventos de chuva anteriores na bacia. Quando o solo atinge a capacidade de campo, a água começa a percolar para a zona de armazenamento. Se a intensidade do escoamento exceder a capacidade de infiltração do solo, a água se acumulará na superfície, mesmo que o armazenamento não esteja completo. A zona de armazenamento é preenchida gradualmente, mas a água infiltrada também está deixando a estrutura ao infiltrar-se no solo ao redor e, opcionalmente, através do dreno, conectado ao sistema de drenagem. Quando tanto a camada de armazenamento quanto o solo estão saturados, a água começará a se acumular na superfície e, se a profundidade exceder a altura da camada superficial, transbordará.
Ressalta-se a possibilidade de utilizar o módulo de qualidade de água do MIKE+ para analisar as concentrações e avaliar a eficácia dos processos de tratamento proporcionados pelas diferentes tecnologias LIDS. É cada vez mais crucial avaliar não apenas o desempenho hidrológico de cada um desses sistemas, mas também a qualidade da água que escoa superficialmente pelas bacias e acaba parando nos corpos receptores.
Resultados
A análise dos mapas de inundação entre os diferentes cenários indica uma efetiva mitigação das inundações para um evento de chuva com período de retorno de 20 anos e 4 horas de duração. Observou-se uma redução significativa tanto na extensão da área inundada quanto na magnitude do evento, resultando em uma diminuição de 48,2% na altura máxima da lâmina d’água, diminuindo de 13,7 cm para 7,1 cm.
Figura 4. Zonas de inundação do cenário atual e sustentável
A Figura 5a apresenta a comparação dos hidrogramas no ponto de saída da drenagem à esquerda do condomínio. Nota-se que as tecnologias LIDS causaram alterações consideráveis, reduzindo em 9,60% o pico do hidrograma e 35,27% o volume escoado, embora o tempo de concentração tenha se mantido parecido. A Figura 5b ilustra uma das sub-bacias urbanas, onde foram instalados 250 m² de pavimento poroso e uma cisterna com área de captação de 200 m² do telhado, também foi observada uma redução significativa no pico de vazão.
Figura 5. Comparação de hidrogramas entre cenários
A Figura 6 compara o balanço hídrico entre os dois cenários. As tecnologias LIDS acopladas às sub-bacias urbanas reduziram o escoamento superficial, capturando 430,06 m³ de água da chuva. Dessa quantidade, 49,7 m³ foram infiltrados e evaporados, representando as perdas totais, enquanto 159,8 m³ foram retidos pelas estruturas. Devido à saturação da capacidade dessas estruturas, os restantes 220,6 m³ resultaram em escoamento superficial, que foi direcionado ao sistema de drenagem ao longo do evento ou armazenado ao longo da extensão da bacia.
Figura 6. Comparação do balanço hídrico entre cenários

Por fim, também é possível analisar os resultados dos bioretentores, implantados como elementos hidráulicos ao longo dos meios-fios no cenário sustentável. A Figura 7 ilustra a variação do nível de água nos bioretentores durante o evento de chuva simulado. Observa-se que os biorreatores encontram-se inicialmente saturados, preenchidos com uma coluna d’água de 1,0 metro acima da cota de fundo.
Figura 7. Variação do nível d’água nos bioretentores
A implementação dos LIDS demonstrou um impacto significativo na redução do escoamento superficial e na mitigação de inundações na área de estudo, indicando a importância de incorporar soluções baseadas na natureza no planejamento urbano, de forma a melhorar a resiliência das cidades frente a eventos extremos.
Referências:
[1] World population living in cities. Available online: https://brasil.un.org/pt-br/188520-onu-habitat-popula%C3%A7%C3%A3o-mundial-ser%C3%A1-68-urbana-at%C3%A9-2050 (accessed on 24 June 2024).
[2] Definition LIDS. Available online: https://www.epa.gov/nps/nonpoint-source-urban-areas (accessed on 03 June 2024).
[3] Kinematic Waves (Product Documentation MIKE+ Collection System). Available online: https://manuals.mikepoweredbydhi.help/latest/Cities/MIKE_Plus_Collection_System.pdf
[4] Urban Street Stormwater Guide. Available online: https://nacto.org/publication/urban-street-stormwater-guide/stormwater-elements/green-infrastructure-configurations/stormwater-curb-extension (accessed on 27 June 2024).
[5] Foto de capa: Foto de Genaro Servín www.pexels.compt-brfotopessoa-andando-de-bicicleta-durante-dia-chuvoso-763398
Escrito por: Lucas Borges - Estudante em Eng. Sanitária e Ambiental e Estagiário na HydroInfo.